terça-feira, 29 de setembro de 2009

As Fúrias - As Benevolentes - Parte II

Numa tragédia de Ésquilo, as Fúrias, (deusas gregas, cuja simples pronúncia de seus nomes, causava enorme temor nos humanos) querem castigar Orestes que matou a própria mãe. Elas eram deusas vingadoras e cruéis que farejavam o cheiro de carniça, principalmente nos crimes de sangue, isto é, crimes contra a própria família. Para que não fossem atraídas ao falar seus nomes, eram chamadas, num eufemismo, de As Benevolentes.
Eis aí uma explicação para o título do livro, que dá margem a inúmeras interpretações: no livro há um crime de sangue, mas por outro lado, o que é uma guerra senão crimes cometidos contra irmãos? Irmãos de uma mesma nação, no caso das guerras civis, guerras religiosas, ou irmãos em humanidade, já que a maior parte das religiões prega a irmandade entre os homens.
No caso do livro, o narrador não é punido, ele foge e vive o resto de sua vida como um homem de "bem".
Voltemos então ao âmago de As Benevolentes: numa guerra, se não matamos nosso inimigo, ele nos matará.
Em toda a sua narrativa, Max Aue não se exime de culpa pelo que fez, mas justifica seus crimes, alegando que em situações-limite, todos fariam o mesmo, isto é, matariam seus inimigos, (no caso nazista, incluíndo aí, mulheres, crianças, judeus, tuberculosos, etc) enfim, todos os que além de "inimigos" punham em risco a "raça pura" defendida e buscada pelo ideal nazi.
Em meio aos horrores narrados no livro, se constata uma terrível verdade: numa guerra, ninguém se sente culpado. Numa passagem, muito bem construída, o narrador conta que no extermínio de paralíticos, doentes mentais e pessoas portadoras de alguma doença contagiosa ou grave, nenhum dos responsáveis por essa inominável crueldade, se sentia responsável direto pelas mortes.
A enfermeira dizia que só tirou a roupa do doente e o encaminhou ao médico; o médico dizia que só o mandou para o guarda; o guarda dizia que só ligou o gás, enfim, ninguém achava que tinha "acionado o gatilho" e matado seres indefesos. E assim foi com os maquinistas dos trens que levavam os prisioneiros aos campos de concentração, assim foi com os guardas que os selecionavam para a câmara de gás ou para os trabalhos forçados, etc, etc...todo mundo dizia que cumpria ordens de seus superiores e que seu papel era obedecer, sem questionar, como aliás fazem todos os soldados, até hoje.
Semana passada, aconteceu um episódio aqui no Rio, que imediatamente, me fez pensar em como podemos mudar de lado (guardadas as devidas proporções): um bandido assaltou uma farmácia e fez a dona do estabelecimento, sua refém. Ele segurava uma granada no rosto da moça e ameaçava explodir, se a polícia se aproximasse. Depois de horas de negociação, um policial da força de elite, aproveitou quando a moça abaixou a cabeça para vomitar e deu um tiro certeiro na cabeça do bandido. A rua estava lotada de gente esperando pelo desfecho e, quando o bandido caiu morto, todos aplaudiram entusiasticamente. Eu, quando vi a cena, confesso que fiquei aliviada e pensei: se não o matassem, ele mataria a moça e mais uma dúzia de pessoas em volta. Nesse caso, ele era o inimigo.
Então, quando a morte é justificada?
Eu, que me considero uma pessoa do bem, aplaudi em pensamento a ação da polícia.
Em que nos transformaríamos frente a frente com um assassino que nos ameace a vida?
Essas e muitas outras são as perguntas que venho me fazendo....
Em que momento despertamos As Fúrias que existem em nós?


P.S. Em nenhum momento quero justificar o holocausto, muito pelo contrário, acho, como já disse antes, inominável, terrível, hediondo, o que os judeus e todos os povos inocentes, trucidados pelos nazistas, sofreram.
Só quero que as pessoas reflitam um pouco sobre aonde os "ideais" podem nos levar e sobre (citando Hannah Arendt) a "banalidade do mal". Aliás, cada vez mais banal nos dias atuais.


Um comentário:

Beth/Lilás disse...

Maninha!
Estou comentando neste post antigo teu por achar que, por tão bem escrito, não merece ficar sem um comentário.
Então, penso que é isso mesmo, muitas vezes podemos estar envolvidos em algo que acarretará no mal para alguém ou outros, involuntariamente, sem percebermos ou analisarmos as dimensões de nossos atos, mas agindo apenas pelo condicionamento das normas estabelecidas.
Você fez uma ótima comparação entre o livro As Benevolentes e o cotidiano nosso atual. amei!
beijos cariocas