quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Um Conto - O Guardador de Palavras

Giovanni não podia imaginar que o trabalho que arranjara como guarda palavras naquela biblioteca fosse ser tão difícil.
Não, não imaginara mesmo que seria tarefa tão fatigante.
Porque lidar com palavras não era coisa fácil. Agrupá-las, discipliná-las, mantê-las quietas era muito trabalhoso, tanto física quanto emocionalmente.
Sua responsabilidade era imensa, ele sabia agora.
Havia as inquietas, as que teimavam em sair de onde não deviam.
Havia as hiperbólicas, as que não cabiam em si de tão grandiosas. E as metafóricas, leves, melífluas, que saíam voando, entontecidas, como penugens assopradas quando bate uma brisa...
Por mais que as etiquetasse, datasse, guardasse, engavetasse...não havia meio que as fizesse seguir regras, ou  ficassem nos lugares determinados.
Algumas, e ele era obrigado a fazê-lo, tinha mesmo que amarrar nos livros a que pertenciam, com fios invisíveis a olho nu.
Era uma tarefa meticulosa, pois a agulha tampouco se enxergava com os olhos da cara. E, mesmo fazendo aquele trabalho de Penélope, de costurá-las às páginas, uma a uma, nem assim as conseguia prender.
Às vezes perdia a paciência: Ah! Diabos que as carreguem!
Outras, obedientes, quase não causavam estorvo, a não ser quando se juntavam às revolucionárias, às libertárias, às palavras de ordem...Essas, ninguém segurava e ainda influenciavam as outras, as que andavam na linha e saíam, juntas e levando as outras, as inócuas, a fazer balbúrdia pela biblioteca.
As onomatopéicas, essas eram barulhentas, escandalosas, quebravam o silencio das noites escuras e insones. O cheiro de papel novo e velho enchia as salas escuras e era quase palpável o perfume que se desprendia dos velhos livros, alguns antiquíssimos...
Ele tinha bem poucos dias de paz, o pobre Giovanni. Muito poucos mesmo.
Na maioria deles o guardador não parava um minuto, pois mal se distraía  e virava as costas para uma das milhares de estantes, bastava isso, e pronto. As palavras já começavam de novo a se embaralhar, entrar em páginas proibidas, trocar de lugar com outras, sair dos tomos onde haviam sido escritas há muitos anos atrás, mudando o sentido das frases, às vezes de parágrafos inteiros!
Proibições! Elas não admitiam proibições. Eram cheias de vontades, tinham vida própria, senhoras de si.
Às vezes, quando Giovanni cochilava em seu cansaço, acordava com algumas delas pousadas em seu bigode ou nas suas grossas sobrancelhas. Outras, penduravam-se em suas orelhas, como brincos e riam-se dele, a zombar daquele pirata barrigudo...
Pobre coitado. Não era definitivamente tarefa fácil persuadí-las a voltar de onde vieram, aos seus livros de origem, às páginas onde foram escritas.
Mas havia dias em que as sapecas apiedavam-se dele e comportavam-se como crianças na missa de domingo, aparentemente submissas, mas cochichando baixinho, cutucando umas às outras. Nesses dias ele conseguia tirar uma boa soneca, ouvindo o sussurro ao longe e sentindo leves cócegas nos dedos dos pés.
Mas, na maior parte das noites e dias elas agiam como crianças levadas, que após saírem da escola, onde estiveram por tanto tempo enfurnadas, correm, gritam, enfim libertas das paredes e lições.
Mas, pensando bem, entre elas, ocupando seus dias e noites, mesmo tendo que amarrá-las, coibí-las, seguí-las, domá-las, sentia-se feliz. Pois, sabia em seu íntimo, que agora sua vida tinha algum sentido.

Dedico esse conto à minha querida amiga e bibliotecária Giovanna, guardadora de livros e palavras, e ao seu amor pelos livros antigos e novos, e, pelas palavras, elas também, a minha paixão e o que dá sentido à minha vida.

37 comentários:

Vivian disse...

Bom dia, Glorinha!!

Belíssimo conto!!
Parabéns!!!
Envolveu-me completamente a leitura.
Foi um prazer ler.
Beijos
Boa semana!

chica disse...

Clap,clap,clap(isso é pra ser aplaisso,rsrs) LINDO,Glorinha,.Belíssima homenagem.E se as letrinhas fossem comonós, agitadinhas, quanto trabalham dariam,heim? beijos, lindo fds!(estarei fora nele)chica

Lu Souza Brito disse...

Olá Glorinha,

Bela homenagem a Gi, pelos posts dela dá para perceber o quão apaixonada pelos livros e pelo trabalho ela é.
Ahahahha, seu conto me fez lembrar do Livro "A menina que roubava Livros". Da parte que ela descreve a emoção de ver aquele monte de livros ali na estante, como que chamamndo por ela.
Ficou uma delícia de ler. E pobre do Giovanni, fiquei cansada por ele. Mas acho que entendi a moral da´história: mesmo aquilo que nos cansa, que requer nossa atenção, nosso esforço, pode ser a nossa motivação para viver - algo que dá sentido a nossa vida.
Um beijo!
Lu

lolipop disse...

Glorinha...
Este seu conto é simplesmente fantástico. Excelente! Achei tudo perfeito, desde o tema, á utilização dum certo surrealismo, ao ritmo ideal daquilo a que chamam agora "micro-ficção" ou "micro-conto", uma coisa que se tornou assunto nos meios literários e que é definido por um requisito pulmonar...ter uma duração não superior ao tempo necessário para fumar um cigarro...a definição não é minha é de Charles Baxter...
Gostei muitissimo!
Parabéns querida amiga!
Esse conto me fez lembrar Lydia Davis...

TERNURASSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS
BEIJOSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSSS

Glorinha L de Lion disse...

Obrigada Alê, meu amigo...amigos tem o dom de fazer as palavras criarem vida em mim! Quando escrevi esse conto há dois dias atrás, não pensei que o estava escrevendo para a Gi. Mas, inconscientemente, estava. E assim que o passei pro blog, enxerguei que meu guardador de palavras era ela, a minha muito amada amante dos livros, a amiga Gi! Até mudei o nome do personagem...rsrs Beijos,

Glorinha L de Lion disse...

Oi Vivian, obrigada, fico feliz que tenha gostado. Beijos,

Glorinha L de Lion disse...

Mas elas são Chica, elas são e muito, por isso escolhê-las dá tanto trabalho, elas são vivas e agitadas como nós. beijos, obrigada pelos aplausos,

Glorinha L de Lion disse...

Isso mesmo Lu! Interpretou muito bem. Às vezes, conseguimos tirar prazer do enfadonho. Outras vezes, descobrimos que o que nos mantém vivos e dá sentido à nossa vida, mesmo sem o saber, é o nosso cotidiano, mesmo rotineiro e trabalhoso. Mas quis dizer mais que isso, pois as palavras é que o faziam senti-se vivo, como fazem comigo! Beijos, obrigada por sua generosa compreensão,

Glorinha L de Lion disse...

Querida Loli, eu tenho essa característica mesmo, desde sempre, de fazer contos curtos. Talvez por ter começado na poesia e ter meus dois pés nela. Sou sucinta em todos os meus contos. Fico feliz que tenhas gostado. Não conheço essa autora, mas se me comparas a ela, com certeza deve ser boa! rsrs Escrever às vezes, é como receber "UM ESPÍRITO" que baixa em mim! Esse teu comentário é mais um que me enche de força e coragem! obrigada amiga querida! beijos,

nadiru-san disse...

Ah! que conto delicioso!!!
e que afortunada a Giovanna!!
Sabe,Glorinha,lembrei que quando menina ao entrar na velha biblioteca publica da minha cidade
o cheiro me inebriava algo mágico acontecia comigo...
confesso que ainda me sinto encantada ao adentrar uma biblioteca!

bjs

Glorinha L de Lion disse...

Obrigada Nadiru! Acho que o clima mágico que as bibliotecas guardam, tudo o que elas têm dentro de suas estantes, toda a sabedoria e conhecimento que encerram em suas prateleiras, emocionam quem ama as letras, não é mesmo? beijo grande,

pensandoemfamilia disse...

Muito bom. Fui na cadência das frases e me vi entre todas estas palavras. Ufa! Como é importante gostar do que se faz, pois tocamos com outros olhos . A querida Gi é uma destas pessoas que ama o que faz numa biblioteca.
Parabéns , belo conto, sensível homenagem.

Glorinha L de Lion disse...

Oi Norma, essa é a paixão de que falo no conto, amar o que se faz,sem restrições. Esse amor nos mantém vivos e lutando pelos nossos sonhos, beijos,

welze disse...

estou maravilhada e pode não acreditar, vindo de uma falante e inquieta como eu, mas estou sem palavras. Terei que recorrer ao guardador delas, para pedir-lhe algumas por empréstimo, até as minhas voltem. te adoro. beijos. beijos beijos.

Glorinha L de Lion disse...

kkkkkkkkkkkkkk Não te quero sem palavras não, minha queridona! Vou te mandar umas pelo correio, embrulhadas pra presente! Tb te adoro, amiga-irmã! beijos,

Calu Barros disse...

Dizer que fui tomada pelas palavras é incorrer em redundância; envolvente, mágica,confortável.Daquelas que a gente não quer soltar, mesmo que a oração imponha ou a pontuação acene pra necessidade da mudança.
Ah, deixa ficar nessa afirmação do citado, nesse gostinho do quero e escrevo mais, pois a história me tocou na pele e na alma.
Um conto pra se contar muito!!!
Lindo Gio, Linda Giovana, Linda Glorinha.
Abraços afetuosos,
Calu

Beth/Lilás disse...

Muito lindo mesmo esse conto, maninha, você disse tudo o que as pessoas que estão envolvidas nesse trabalho gostariam de ler.
Giovanna é uma dessas, tão querida, tão atenciosa e cuidadosa com seu trabalho que a envolve completamente.
Sabe que eu gostaria de trabalhar num local assim, cheia de livros, estórias, calma, gente falando baixinho, uma atmosfera que acolhe, eu gosto muito.
bjs cariocas

Carla Farinazzi disse...

Oi Glorinha,

Lindo conto e bela homenagem à Giovanna... admiro pessoas como ela. E como o rapaz do conto. Ah, o que seria de nós sem as palavras?? Não sei dizer.

Beijos, parabéns!

Carla

Glorinha L de Lion disse...

Eitcha Betita, foto nova é? Tá linda...Olha, eu tb gostaria muito de trabalhar numa biblioteca...acho que vou começar a procurar emprego em uma...vamos? beijos,

Glorinha L de Lion disse...

Oi Carla. Quanto à outras pessoas, não sei responder. Mas quanto à mim, eu não seria nada sem elas e muito menos estaria aqui agora, digitando-as...beijos,

...Drika disse...

=) oi Glorinha... as palavras são vivas, quem escreve é que sabe o quanto elas podem nos sufocar aqui dentro se não as colocamos para fora =)

Abraço no coração!

William Garibaldi disse...

Que texto delicioso! Magnífico!
Ouro Puro!
És mesmo uma arrebanhadora de palavras Glorinha!
E quanto a sua amiga Giovanna, uma privilegiada!
As palavras são mesmo vivas! Um conto para todas as idades, que devia mesmo se tornar um filme ou desenho animado! Bem sentiu o Alexandre Mauj que fez um filminho mental!

.........

Glorinha aqui quero lhe agradecer o rico e belo comentário que me fez lá no VF! Olha, fiquei emocionado, esta semana tiveram comentários preciosos por lá. E o seu,em especial, me fez sentir menos solidão! Esta sacada do pérola aos porcos é nossa cara né! Eu posso escutar você dizendo! Rssss
Uma amiga poetiza, que só ela, me disse certa vez, que seu namorado era tão burro e por isto ela o abandonou, pois ler poemas a ele era jogar pérola aos porcos... kkkkkk Penso tanto nisto! Que sacada a sua, a blogosfera é um BBB mesmo! Um Orkut! Rssss
Muito me honra você me chamar de amigo Glorinha! Sou mesmo e lhe tenho assim em meu coração, afinal partilhamos a mesma dor... como disse a sua amiga Beth por lá também: "... é difícil este mundo pra gente como nós!"
Beijos de Luz!
Gratidão!
...e mesmo assim nós estamos sustentando nossa palavra viva! Isto é belo!

Glorinha L de Lion disse...

Oi Calu, muito obrigada por suas palavras, hj estou muito cansada, pois escrevi muito, mas amanhã vou dar um pulo no seu blog pra agradecer, tá? beijinhos,

Glorinha L de Lion disse...

É sim Drika, mas prefiro ser sufocada por elas, a viver seca, sem elas...beijos,

Glorinha L de Lion disse...

Oi William, vc tb foi me conquistando com esse seu jeito igual ao meu! hehehehe. Pérolas aos porcos é uma frase que uso muito na intimidade ao ficar revoltada quando não entendem o que quero dizer...sempre falei isso, desde o início do blog...e acho mesmo que muitas e muitas vezes foi o que fiz, e é o que faço às vezes. Todos os poetas e escritores sentem isso...E às vezes é enlouquecedora essa solidão, não é mesmo? Como é difícil meu amigo ser poeta em tempos de BBB, quando só as bobagens tem vez...beijo grande, boa noite!

Giovanna Valfré disse...

Ai meu Deus!!Quase tenho um troço aqui gente. Fui lá ler os comentários no meu blog e leio que alguém fez homenagem a minha pessoa...Que isso??Tô acostumada com isso não gente. Sou uma bibliotecária quieta, discreta, silenciosa na maioria das vezes... Mas Glorinha é Glorinha, essa mulher que transforma palavras em poemas, que transformas pingos e pontos em presentes. Assim ganhei esse presente hoje. E olha que esses dias, com o falecimento do meu amigo estou tão triste e além do mais com muito trabalho atrasado. Os livros rebeldes para domar, limpas, higienizar, guardar. As palavras presas na garganta que precisam sair e cair direto no papel ou na tela do computador, para ser mais moderna. Meu artigo para a coluna Arquivo e Memória, que escrevo mensalmente para Revista Vitória, está atrasadíssimo. Por isso não entrei no blog ontem, não comentei nos blogs dos amigos. Culpa das palavas, sejam as dos livros que precisam ser guardadas e preservadas, sejam pelas minhas que precisam sair como num parto difícil. Glorinha amiga, cada dia me apaixono mais por você. O que farei eu com tanto amor, amor fraterno é claro, mas amor forte e verdadeiro, daqueles que a gente guarda quietinho até o dia de encontrar quem o queira ou mereça. Bjs querida. Nem sei mais o que dizer.

Taia Assunção disse...

Que lindo glorinha, li tudo de um só gole...quase pude vê-las pulando de um lado a outro. Parabéns...é por essas e outras que eu gosto tanto de vir aqui. Beijocas!

Taia Assunção disse...

Glorinha com G maiúsculo de "Gente Grande"...rsrsrsrs. Amei o agradecimento da homenageada. Beijocas nas duas!

Glorinha L de Lion disse...

Gi, querida. Sabe? Quando escrevi esse conto, há 3 dias atrás, não pensei em vc na hora. Escrevi ão rápido e tão cheia de garranchos, num papel, que parecia que o tinha psicografado. Para passar à limpo, no post, tive que decifrar à mim mesma e às minhas letras, elas tb rebeldes como as palavras do conto! Ao passar pro computador, achei que tinha descrito vc...uma guardadora de livros e de suas palavras mágicas, vivas, sempre mudando, questionando, inovando, mesmo quando estão em livros antigos...aí, mudei o nome do personagem para Giovanni e resolvi dedicá-lo à vc, minha amiga mais que querida, pois acho, que inconscientemente, o fiz, pensando em seu trabalho meticuloso e importantíssimo. Eu tb, a cada dia, te vejo como a amiga em quem confio cegamente, como uma irmã! Beijo grande!

Glorinha L de Lion disse...

Oi Taia querida, se soubesse como fico feliz quando gostam do que escrevo. Isso é meu grande prêmio! Beijos,obrigada,

Glorinha L de Lion disse...

Tá vendo Taia? sou ou não sou uma pessoa privilegiada por ter amigos desse quilate? ô coisa boa da vida isso, sô! Obrigada, amiga, Beijão!

Lívia Azzi disse...

Conto doce, Glorinha!!

As palavras são a ficção da ficção e haja imaginação e criatividade para dar conta de tanta vontade delas...

Beijinhos...

Glorinha L de Lion disse...

Oi Lívia, obrigada! As palavras têm vida própria, como eu disse no meu conto! beijinhos,

Renata disse...

Lindíssimo!!! Meus aplausos!!!

Me fez lembrar o guardador de livros do Cemitério dos Livros Esquecidos...

Um dom abençoado esse seu de juntar tão bem as palavras e transformá-las em algo tão tocante!

Abraço,

Lúcia Soares disse...

Glorinha, e como são importantes essas letrinhas!
Com elas escrevemos o que queremos, ou falamos o que devemos, ou não.
As letrinhas rebeldes insistem em se amontoar em nossas mentes, não só nos livros, e nos fornecer material para "despejarmos" em palavras.
Adorei o conto. Li o comentário lá no blog da Gio e vim ler o conto.
Inspiradíssimo.
Beijos!

Glorinha L de Lion disse...

Oi Renata, obrigada. Realmente o Cemitério de Livros Esquecidos é um lugar inspirador e mágico...quem dera existisse um assim na vida real...iria pra lá todos os dias....beijos,

Glorinha L de Lion disse...

Oi Lúcia, obrigada amiga. Palavras são como passarinhos, como já falei num poema...são incansáveis, têm vida própria e, graças à elas, vivo voando por aí....beijos,