segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Às Cegas

Nuvem Sobre o Largo da Carioca- Márcia Foletto (foto vencedora do Concurso Prosa & Verso, do jornal O  Globo, cujo tema era: Contos do Rio)



Contos do Rio – Às Cegas 
Gloria Leão
Pairava sobre a cidade, enquanto cigarras loucas cantavam, imensa nuvem tal e qual nave-mãe, de tule e renda...
Verão de 50 graus, sem sombras, tórrido, vento ausente. Nenhuma brisa balançava as poucas folhas meio secas das escassas árvores: mudas, quietas, sedentas assistindo ao final da tarde.
Homens e mulheres. Pressa, gravatas frouxas, frouxos sorrisos de até amanhã...Metrôs, trens, ônibus lotados. Vontade louca de um ar condicionado.
E a nuvem nem se movia, indiferente ao movimento. Travessas, ruas, avenidas se esvaziando aos poucos...Carros, buzinas, guinchos, freadas, fumaças.
Dentro de alguns minutos a cidade seria sua. Nave-mãe protetora, aguardava.
Ninguém olhava pra cima...só o chão interessava, o sinal pro ônibus, o buraco, o tropeço...Eu ein? Cair numa hora dessas?
Xingamentos, palavrões, ambulantes, contrabandos, água em garrafas plásticas, biscoitos de polvilho...Olha o DVD do filme que ainda nem passou. Aqui, só comigo, o último modelo de óculos do "Feichon Rio" É hoje só...aí madame, a sacola do "Luis Viton"  que acabou de chegar de Paris...
Segura a bolsa. Olha a mochila. Vem um trombadinha virando a esquina. Olhos atentos, cansados, sonolentos. Suor escorrendo nos decotes, nos ternos, nas costas. Celulares tocando... portas dos metrôs engolindo, ônibus cuspindo, motos vomitando gás carbônico, fumaça negra, inferno na terra. Gente feia, outras bonitas, uns pobres coitados, alguns mendigos.
E a nuvem, imóvel, branca e rosada ao cair da tarde no centro do Rio. Magnânima rainha, disco voador etéreo, ancorado num céu de dezembro.
Afinal, todos se foram, embarcaram em suas vidas, atrelados ao destino, cada qual com sua dor, seus amores, sonhos, desejos. Tristes uns, outros felizes. Formiguinhas apressadas voltando aos seus formigueiros. Mal sabem elas que basta uma pisada...formigas apenas, no meio de milhões de outras...
Nuas ruas, silencio, cães latindo, paisagem rosada....e a nuvem pairando, esperando o momento adequado.
Silenciava a cidade. As cigarras se calavam, o calor dava uma trégua, uma brisa finalmente soprava. Céu escurecia...
Despontou primeiro um halo, depois um raio, resplendor. Foi saindo devagar, detrás da nuvem enorme...foi saindo, suave, enquanto a brisa desfazia sua coberta , seu imenso manto de organdi....desmanchou-se a renda e o tule e deu lugar à lua cheia, imensa, redonda, amarela... escondida o dia inteiro...E o espetáculo aconteceu, sem público e sem platéia....só as poucas árvores assistiam. Solitariamente descortinou-se, iluminou a cidade...não valia a pena mostrar-se pra uma gente que se esqueceu de olhar pro céu uma única vez...
31/05/2010.
Participei com este conto do Concurso Prosa&Verso do jornal O Globo, onde era necessário escrever sobre a foto. Deixo aqui, como um presente aos meus leitores e amigos.

39 comentários:

Beth/Lilás disse...

Maninha,
Primeiramente devo dizer que a foto é esplêndida, quem a captou, na confusão de uma cidade como o Rio é um gênio, um artista e tanto!
Seu texto é primoroso, como muitos, deveria ter tirado o primeiro lugar, pois lembrou-me em muito a visão que Saramago queria dizer com seu Ensaio sobre a Cegueira, só que ele não falava assim como você,diretamente, e sim em metáforas, mostrava a ação das pessoas que, completamente 'cegas' não viam o que se passava ao seu redor.
E é assim a vida nas grandes cidades, não olham pro céu, não vêem as belezas arquitetônicas do passado e do presente, não observam a natureza nas pequenas árvores plantadas, nas flores dos jardins.
Uma loucura esta correria dos dias atuais!
Texto e imagens perfeitos!
beijãozão carioca

Unknown disse...

Muito bonito.

Beijo.

Nilce disse...

Glorinha que maravilha de conto.
Que presente bom você nos deu.
E nós é devemos a você. Mais carinho, mais palavras de incentivo, mais flores, mais céus iluminados...
Li de um sopro só. Amei e vou ler mais e mais.
Obrigada por trazê-lo aqui.

Bjs no coração!

Nilce


PS: Espero que esteja melhor e um pouco mais otimista. Olha pro céu aí, a lua cheia tá chegando. Bjs

Nilce disse...

Ah, voltei pra dizer que a cara do blog tá linda.
Amei também. hehe

Bjs

Luciana disse...

Glorinha, obrigada pelo recado, já fui lá visitar a Beth também.
Menina, amei seu conto, senti todo o clima da cidade grande nas suas palavras, e subi duas vezes pra ver a foto novamente, achei perfeito.
A propósito votei na sua enquete mas acabei não conseguindo deixar comentário no dia.

Beijo

Anônimo disse...

Oiiiiiiiiii Glorinha!
Isso é o que eu chamo de estar no lugar certo, na hora certa e no momento certo. Às vezes a vida apresenta umas oportunidades assim. Linda imagem.
Parabéns pelo conto!!
Bjsssssssss

Zélia Guardiano disse...

Lindo presente, Glorinha!
Lindo presente!
[Escrevo-lhe estas linhas
Bem quando
Uma cigarra inicia
Seu canto de chegada
Seu canto de despedida }
Mas voltemos ao seu texto: quanta poesia sensível, delicada, leve, numa prosa...
Você é demais, amiga!
Abraço apertado e beijinhos

Glorinha L de Lion disse...

POis é Beth e eu ainda nem tinha visto o filme sobre o Ensaio sobre a Cegueira e como não li o livro...foi inspiração mesmo. Mas achei muito difícil escrever sobre essa foto. O negócio foi fechar os olhos e me imaginar naquela cena...aí veio. Beijos e obrigada.

Glorinha L de Lion disse...

Manuel, obrigada, bjs

Deia disse...

Oi Glorinha, uma melodia esse seu conto! Fiquei com a respiração suspensa, imaginando o destino de tal nave-mãe - e foi sublime! Um beijo, Deia

Glorinha L de Lion disse...

Oi amiga Nilce, obrigada minha queria=da. o pior é que aqui tá chovendo o dia todo, nem tem lua hj...hehe mas estou mais animada sim, esperando. Vamos aguardar os próximos capítulos. beijos.

Glorinha L de Lion disse...

OI Luciana, obrigada. Realmente é uma bela foto. Mas foi difícil escrever sobre ela viu? Mas foram ótimos os contos que participaram. beijos.

Glorinha L de Lion disse...

Pois é Marli, a fotógrafa foi muito feliz. Obrigada. Beijos.

Glorinha L de Lion disse...

Oi Zélia. E vc, o que direi de vc amiga? Escreve lindamente tb! Amo seus escritos, acho até que somos almas gêmeas na escrita. hehe beijão.

chica disse...

parabéns,Glorinha!Adorei, obrigado por postar!Lindo,lindo, do teu jeitinho!beijos,ótima semana,chica

Astrid Annabelle disse...

Que imagem hein,Glorinha!?!
Um instante sagrado...
Seu conto é uma maravilha.
Me senti transportada para o meio da multidão e queria sair correndo....que loucura!!!
Muito bom.
Parabéns...você é ótima sempre.
Um beijo gostoso...e se puder leia a resposta que deixei para você no Navegante.
Astrid Annabelle

Kelly Kobor Dias disse...

E que delicioso presente você nos deu!! Adorei seu texto, se ler já dá para imaginar a foto. Adorei o layout novo , beijos

Glorinha L de Lion disse...

Deia, obrigada pelos elogios. Eita foto bonita e difícil pra escrever sobre ela...mas valeu né? Beijos.

Glorinha L de Lion disse...

Chica, obrigada, vcs são todos uns amores! bjs.

Glorinha L de Lion disse...

Oi Astrid, obrigada minha amiga. Não é? Imaginar um dia de calor, verão e aquela nuvem pairando sobre o centro do Rio...Achei bem difícil escrever sobre isso, mas na hora H a inspiração veio. Já fui lá te ler e responder. Obrigada, vou ter que ter mais paciência? Ui...não sou muito boa nisso, mas fazer o que, né? Beijão.

Glorinha L de Lion disse...

Oi Kelly, obrigadíssima querida! Beijão.

orvalho do ceu disse...

Olá, Glorinha
Permita-me recortar um parágafo que me encantou:
"Nenhuma brisa balançava as poucas folhas meio secas das escassas árvores: mudas, quietas, sedentas assistindo ao final da tarde."
Agora, fiquei estupefata com o seu final: deslumbrante!!!
"...não valia a pena mostrar-se pra uma gente que se esqueceu de olhar pro céu uma única vez"...
Meu Deus!!! Fantástico!!!
A arte de escrever é um DOM precioso demais...
Abraços fraternais com voto de serenidade.

Glorinha L de Lion disse...

Obrigada Rosélia, é uma arte dura, sofrida, e, por enquanto, em tempo de espera. Obrigada por ter gostado tanto. Beijos.

jungleworldcitizen disse...

Obrigada pelo presente! E eu assistiria a esse show com o maior prazer, que nuvem linda!
Boa terça!

Beatriz disse...

Oi Glorinha,
Nem preciso dizer que essa nuvem passando ficou fantástica! Quanta gente passa por ali tão apressada e nem olha para cima, que desperdício! Ai que saudade de passar ali pelo Largo da Carioca...o lugar é um raio X do Rio, onde se vê de tudo um pouco, tanta gente diferente, vendendo coisas diferentes, de todo lugar...Ah, essa carioca desgarrada está com saudades da "terrinha"...
Beijocas mil!!!
Bia
www.biaviagemambiental.blogspot.com

pensandoemfamilia disse...

Nossa maravilhoso. Vc captou de forma poética o cotidiano do RJ e o corre -corre de lá para cá das pessoas e a insensibilidade de olhar o enntorno pela velocidade que se está dando a vida.

Não vi o resultado, mas vc teve uma linda participação. Obrigada por nos oferecer.
bjs

MARCELO DALLA disse...

Maravilhoso querida!!!! Um retrato lindamente construído dos tempos atuais. A Lua no final me passou a energia do amor universal. Mesmo que não valha a pena, ele se mostra. Se dá. Se doa.
Um grande bjo, orgulho de ser seu amigo!!! :)

Unknown disse...

Lindooo!
Captou perfeitamente a imagem tão linda quanto. Lembrei-me de mim, numa tarde assim a caminhar apressada pelo centro. Eram outros tempos, novas danças... que mesmo no ir e vir, embalava bons momentos.

beijos

Bombom disse...

Lindo! Gostei imenso! Tão sentido, tão vivido, tão natural, tão belo!...
Adorei!Não foste a "winner"? Deixa lá, será para a próxima que já vem perto! Não desistas!
Obrigada por teres compartilhado connosco.
Bjs. Bombom

ManDrag disse...

Logo a primeira ideia que vem: uma nave em forma de disco.
Óptimo texto!
A nossa vida nestas megacidades é bem demonstrativa do quanto estamos afastados da natureza e das suas maravilhas e mistérios.
Cada vez me choca mais essa vida incaracterística e anónima desta nova espécie; o homo urbanus. A essa existência febril devo a minha falta de saúde psicológica.

Parabéns, amiga, pelo conjunto foto/texto!

Abraços

Glorinha L de Lion disse...

Alê, vc é suspeito, amigo acha tudo o que a gente faz lindo..hehe. Brincando...gostou? Que bom, tenho vc em alta conta e suas críticas serão sempre bem vindas e os elogios, mais ainda!!!! hehe
Bjs.

Glorinha L de Lion disse...

Oi Jungle, vc gostou da nuvem? Mas e o meu conto...snif, aposto que não leu, não disse nada sobre ele...snif...bjs

Glorinha L de Lion disse...

Oi Jungle, vc gostou da nuvem? Mas e o meu conto...snif, aposto que não leu, não disse nada sobre ele...snif...bjs

Glorinha L de Lion disse...

Oi Bia, idem pra vc...acho que gostaram mais da nuvem do que do meu conto...snif...bjs

Glorinha L de Lion disse...

Marcelo, aí sim! Gostei desse coment! Falou sobre o meu conto e não sobre a foto e só da foto! hehe, amigos assim são meus grandes incentivadores a continuar minha caminhada! Obrigada amigo, obrigada! Sensibilidade à flor da pele, como eu!

Glorinha L de Lion disse...

Oi Miguxinha, obrigada! Essa foto dá o que pensar né? Muitos tiveram a mesma ideia, do OVNI pairando sobre a cidade, mas comissão julgadora, sabe como é, cada um tem seu gosto...beijos

Glorinha L de Lion disse...

Bombom, querida, pois é, não fui, mas não faz mal, outros concursos virão, já vieram não é? hehe
Obrigada pela incrível sensibilidade, mesmo sem saber como são as ruas do centro do Rio na hora do rush. Beijos amiga querida!

Glorinha L de Lion disse...

Olá amigo Man Drag. É verdade, não vivemos, corremos, respiramos, mas isso não é vida. Tb fico chocada com esse modo de vida atual. E quanto ao OVNI, pensamos a mesma coisa, né? Obrigada pelo incentivo, beijos

Vanessa Anacleto disse...

Glorinha, o Alexandre me avisou que vc tinha participado do concurso com este texto. O meu, Livro de Ouro, está em http://fio-de-ariadne.blogspot.com/2010/11/livro-de-ouro-conto.html. É muito legal ver a visão de outra pessoa sobre a mesma foto e suas reflexões, como a conduziram a outro caminho. Parabéns

bjs